Abolição inacabada

Três especialistas sobre escravidão e abolição falam sobre o 13 de Maio e de como esta data ainda carece de análise e compreensão da sociedade brasileira.

A praça estava uma agitação só, e o menino Afonso Henrique, então com sete anos (ele, que nascera em 13 de maio de 1881, comemorava aniversário naquele dia - 13 de maio de 1888), observava tudo aquilo num misto de medo e deslumbramento, apertando ainda mais a mão do seu pai, João. A cena, carregada de simbolismo, seria escrita anos mais tarde pelo escritor Lima Barreto, em seus diários, lembrando do que foi para ele o dia em que a população comemorou, no centro do Rio de Janeiro, a libertação dos escravos por meio da Lei Áurea, e que extinguiu a escravidão no Brasil. Mas não só o episódio ficaria nas memórias de infância do escritor, como também o fato de que aquela a Lei pouco tinha feito para os negros e mestiços na ocasião, idos de 1910. Poder-se-ia argumentar que naquele momento ainda era muito cedo para que a tal lei pudesse trazer alguma mudança significativa para os ex-escravos e seus descendentes. "Mas uma lei, por mais desejada que ela seja, não tem a força de jogar por terra o passado histórico", explica Wlamyra R.de Albuquerque, professora de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA), autora de O Jogo da Dissimulação, abolição e cidadania negra no Brasil (Companhia das Letras). E o que foi esse nosso passado histórico de escravidão que moldou, segundo a autora, as relações de subordinação sócio-racial brasileira e que perdura até hoje em nossa sociedade; passados 122 anos da Abolição da Escravidão? "Como considerar que todos eram cidadãos numa sociedade tão assentada de relações raciais assimétricas?", indaga Wlamyra.
 
Raízes do (Brasil) problema racial

Para se compreender o problema da inserção do negro na sociedade e da questão racial brasileira com o fim da escravidão, segundo qualquer historiador sério que se preze, é necessário entender como se deu o processo que culminou com a abolição. "A abolição em 1888 foi o desfecho de um longo processo de desmantelamento da escravidão. Desde pelo menos 1850, quando o tráfico atlântico de escravos foi proibido, a questão servil, como se dizia na época, preenchia a pauta política. Até a escravidão ser finalmente extinta no Brasil, em 1888, muitos escravos já tinham conseguido - por seus próprios meios e esforços - suas cartas de alforria. Isso significa que bem antes de 1888, boa parte da população (negra) brasileira já era formada por libertos. Uma gente que trabalhava, se divertia, estabelecia e resolvia seus conflitos, construía vínculos familiares e religiosos a partir do longo aprendizado no cativeiro, mas também vislumbrando as mudanças decorrentes da abolição", explica Wlamyra.

O que nos espanta é que a história, pós-abolição, quase nada falou a respeito da luta dos escravos libertos e livres no processo que deflagrou no 13 de Maio. "Desde o final da década de 80, especialmente na esteira das comemorações dos 100 anos da abolição, a historiografia brasileira vem reconsiderando os significados e implicações da Lei de 13 de Maio, que aboliu em definitivo a escravidão no Brasil. Depois de mais de cem anos daquele evento muita coisa se perdeu ou foi esquecida e a abolição terminou se transformando numa concessão da Princesa Isabel. Os últimos estudos promoveram uma revisão profunda, que permitiu recolocar a abolição como um momento crucial da história do Brasil e marco fundamental para se pensar as tensões sociais e raciais que se seguiram ao fim do cativeiro. Uma das consequências dessa revisão foi avaliar com mais profundidade a participação de escravos, libertos e livres no processo que culminou na abolição. A escravidão chegou ao fim não apenas porque os escravos fugiram, mas também porque suas ações tiveram efeito político capaz de influenciar debates dos parlamentares e atitudes das próprias camadas senhoriais".

Três livros dos pesquisadores entrevistados que retratam o flagelo da escravidão e de como a abolição da escravatura moldou a sociedade brasileira no tocante a inserção do negro
 
Os olhares também se voltaram para a participação dos livres e libertos, negros e mestiços, no movimento popular que derrotou um sistema de mais de trezentos anos. O movimento antiescravista estava articulado a uma luta por cidadania, que terminou impulsionando a abolição", esclarece Walter Fraga Filho, um dos mais importantes especialistas sobre a vida dos ex-escravos, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), e autor do livro Encruzilhadas da Liberdade: história de escravos e libertos na Bahia (1870-1910), pela editora da UNICAMP, numa entrevista dada à Revista de História, em 2009. Atualmente ele estende sua pesquisa sobre ex-escravos e seus descendentes, estudando essas famílias até 1930. "Havia uma grande expectativa em relação ao fim do cativeiro e não apenas o fim da escravidão que estava na pauta. Escravos e libertos esperavam que a abolição tivesse como desfecho o acesso à terra, à escola ou como se dizia na época à `instrução pública`, à liberdade de movimento e maior inserção como cidadãos. Foram estas expectativas que movimentaram os populares contra o cativeiro e esquentaram as comemorações do 13 de maio. Interessante observar que passada a festa, as autoridades buscaram esvaziar o 13 de maio de sua feição reivindicatória, transformando-o apenas numa data solene e oficial. Nesse quesito, até agora as autoridades republicanas estão vencendo o jogo, pois os 120 anos da abolição passaram praticamente despercebidos", conclui Walter.

Ausência do estado e reivindicação atual

Para esses dois autores, não só o 13 de Maio ficou desvirtuado do seu verdadeiro sentido, como, e principalmente, também a ausência do Estado no processo emancipacionista da abolição suplantou qualquer possibilidade de inserção do ex-escravo na sociedade, como cidadão de fato e de direito, relegando-o, e também seus descendentes, a uma condição de subordinação. A resposta de João José Reis - professor da UFBA e um dos especialistas sobre escravidão e religiosidade africana e afro-brasileira - quando questionado sobre que tipo de reparação o Estado deveria ter feito logo após a Lei Áurea, é taxativa e lacônica. "Educação e reforma agrária". Segundo ele, essa ausência, não só colocou o negro e o mestiço numa situação de subordinação, como arrefeceu qualquer reivindicação de inseri-los com cidadãos na sociedade, repercutindo até hoje, como mostra, por exemplo, as questões da cota. "A polêmica em relação às cotas é para manutenção de privilégio: quem tem não quer abrir mão, porque os argumentos dos anticotas são todos furados, absolutamente todos. As estatísticas da desigualdade racial são eloquentes e aberrantes. Facilitar o acesso do jovem negro à universidade ajudará a corrigir um pouco disso. Além disso, os anticotas fingem desconhecer que elas, em muitas universidades, como a UFBA, não contemplam o negro de classe média (aqueles que cursaram o ensino médio em escolas privadas) e contemplam o branco pobre (aqueles que cursaram o ensino médio em escolas públicas)", responde

13 de Maio repensado

"Acho que o 13 de maio de 1888 tem sido revisto nos últimos anos. Durante muito tempo a data foi posta de lado tanto pelo Estado republicano quanto pelo movimento negro. Um, legava ao esquecimento o forte tom de benevolência monarquista que prevaleceu na memória nacional sobre a abolição. Já a militância não via sentido em celebrar algo que não trouxe grandes ganhos para a população negra. Mais recentemente, estas posições estão sendo repensadas, em parte graças a descobertas dos pesquisadores que informam sobre o quanto a população negra foi protagonista no desmantelamento da escravidão no Brasil. Esta mudança de perspectiva tem esvaziado a velha compreensão da abolição como uma dádiva da Princesa Isabel. Ao mesmo tempo a ação dos libertos e negros livres contra a repressão, controle e condição de subalternidade depois do treze de maio, incluem a data no calendário de lutas da sociedade brasileira. Nesse sentido, o treze de maio é tanto um momento de celebração quanto de esforço da nossa disposição para construir um país mais igual", compreende Wlamyra R. de Albuquerque.

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